As
luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram
íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um
acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e
podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de
sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o
cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso.
Vinte
anos no mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel
subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre
com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava
sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca.
Ela era quem empurrava, o trabalho mais fácil e menos suscetível às
quedas. Do outro lado, ficava Luiza, uma senhora que nunca foi de
muitas palavras, manobrando de costas aquele cotejo desconhecido de
todo o mundo.
Quando
Ana chegou no hospital, Luiza já estava ali. E nunca foi de falar,
de questionar ou de reclamar. Nem de contar sua vida. Pouco se sabia
sobre ela, nem mesmo se era casada, se tinha filhos, se era do estado
de São Paulo. Só que tinha medo dos barulhos e costumava se
assustar. E que vinha doente nos últimos tempos, faltando muito do
trabalho, fazendo com que o caminho demorasse o dobro do tempo e o
risco de acidentes fosse muito maior. Até que, ouviu-se nos
corredores do hospital, tinha morrido. Ana nem pôde se importar
muito, só esperar que alguma enfermeira nova a fosse ajudar a
empurrar a maca dos mortos.
Foram
três dias de penúria e de solidão no túnel até que Samanta
chegou. Jovem e bonita, estudante de enfermagem que achou que aquele
seria um estágio interessante. Falante, mostrando as unhas pintadas,
perguntando da vida de Ana. Era uma pessoa muito diferente de Luiza,
já era possível perceber nos primeiros minutos.
Mas
existia algumas coisas que Samanta não sabia. Que as luzes se
apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os
poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a
qualquer momento. Que os barulhos vinham dos andares de cima e podiam
ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue
não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro
exigia o uso de uma máscara especial.
Não
seria fácil aprender tudo isso.
O
primeiro foi um homem de cerca de setenta anos. Câncer de estômago.
Pessoas tem morrido cada vez mais de câncer. E sempre que acontece,
precisa-se das máscaras.
Ana
tomou sua posição de sempre e foi empurrando. Samanta tomava
cuidado com os degraus, como um jogador de futebol fazendo
reconhecimento de um gramado esburacado. Colocava o primeiro pé com
cuidado, o segundo ia mais facilmente. Os duzentos metros foram
percorridos em um tempo maior que o esperado, mas sem sustos. Nem
mesmo os barulhos do andar de cima vieram. As luzes não se apagaram.
O primeiro morto da novata foi um sucesso. Do outro lado,
cumprimentos da equipe do necrotério.
Um
café, um cigarro, novos restos humanos a serem entregados para o
além. Enquanto levavam uma mulher de trinta e poucos anos, morta no
parto, um homem de vinte, baleado, e uma mulher de cinquenta, câncer
de pulmão, trocaram mais palavras do que Ana jamais havia trocado
com Luiza. Samanta namorava um motoboy fazia três anos e planejava
se casar. Morava junto com ele em um bairro distante e era necessário
dois ônibus para chegar ao trabalho. Achava que, terminando o curso
técnico em enfermagem, teria uma vida melhor.
Dez
cadáveres no primeiro dia. Hora de ir para casa.
Samanta
aprendia rápido e em poucas semanas já não se assustava mais com
as luzes se apagando e se acendendo, começava a decorar onde havia
buracos, degraus ou manchas de sangue e se acostumar com os barulhos
que pareciam vir do além. Ela ainda não era experiente, mas
certamente ia nesse caminho. Será que seria toda uma vida ali, como
a de Ana? Quantos cadáveres? Quantas causas de morte?
Leptospirose,
peste bulbônica, decapitação, suicídio por enforcamento, suicídio
por envenenamento, suicídio por tiro, briga conjugal, neurosífilis,
dengue hemorrágica, raiva, todos os tipos de câncer, todos os tipos
de assassinato. Quantos prontuários. Quantas máscaras. Nunca sabia
os nomes, só empurrava. Chegava do outro lado, conversava com o
pessoal do necrotério, subia as escadas, atravessava a rua, voltava
a esperar. Com Samanta, começou até a brincar de adivinhar a idade,
o sexo e o que acometera o próximo falecido.
Quinta-feira
à tarde, noite chuvosa de março. Uma criança de nove anos que
caíra do sétimo andar em circunstâncias estranhas. Estava o tempo
todo na televisão, Rafaela era o nome, a polícia investigava se os
pais poderiam ter algo a ver. A opinião pública já pedia pela
condenação imediata, mas imagens de circuito do prédio não
mostravam ninguém na varanda no momento da queda. Parecia um
improvável suicídio e a polícia já descartava culpa de alguma
outra pessoa. Passou dois dias no hospital, os médicos tentaram de
tudo, mas a menina tinha acabado de deixar sua vida ali, dois andares
acima do túnel. Agora, seria mais um número na vida de Ana e
Samanta.
Não
costumavam olhar o rosto, todas as informações vinham do
prontuário. O lençol branco cobria a todos que passavam por aquela
maca. Mas, no caso de Rafaela, a curiosidade foi maior. Pela primeira
vez, levantaram o pano branco. Olharam o corpo. Os ossos quebrados,
as escoriações, o rosto angelical. Era uma menina bonita, loira e
de olhos azuis. Provavelmente teria uma vida confortável com sua
família de classe média. A não ser que passasse por um inferno
pessoal. A não ser que as circustâncias estranhas de sua morte
fossem as piores possíveis. A não ser que, aos nove anos de idade,
a morte tivesse sido o melhor caminho.
Ana
sentiu um peso inédito ao começar a empurrar aquela maca pelo
túnel. Nos seus vinte anos de trabalho, jamais vivera algo parecido.
Era o mais próximo de um luto por alguém naquela situação que
poderia experimentar. Engolia seco, pensava em todos os rumos que sua
vida poderia ter tomado, pensava em porque nunca tinha tentado ir
embora dali, recomeçar em outro emprego. Pessoas idosas morrem de
câncer o tempo todo, mas pela primeira vez via uma criança que
possivelmente se suicidou. Quando olhou nos olhos de Rafaela, era
como se sua alma se esvaísse junto com a da pequena.
A
expressão era macabra, e também era a de Samanta. Nos primeiros
metros do túnel, pararam de conduzir. Ana pensava que alguma força
do além, a mesma que às vezes era confundida com os barulhos do
andar de cima, deveria interferir. Mas os barulhos do andar de cima
eram só barulhos corriqueiros do mundo dos vivos. Não eram forças
do além. Nunca um morto se levantou. Nunca um fantasma gerou uma
situação escabrosa ali no mundo subterrâneo. Ana acreditava em
Deus, mas não mais que ele interferia nesse lugar.
Pensou
em chorar, mas não era mais possível. Rafaela estava morta, ela
também estava. Vinte anos empurrando macas com cadáveres em um
túnel subterrâneo. Cafés, cigarros, conversas com o pessoal do
necrotério. Pobre Samanta, pensava, começando naquele emprego. Em
breve, não teria mais sonhos nem aspirações. Em breve, estaria
morta como ela.
Quando
tinha nove anos de idade, era uma criança feliz. Brincava com
bonecas dadas pelos tios com melhor condição financeira e sonhava
em ser médica. Nunca foi popular na escola. Nunca teve grandes
amigas. E nunca tirou boas notas. Aos quinze, assumiu que era uma
pessoa medíocre e que não iria a lugar nenhum. Terminou o ensino
médio e, por pressão dos pais, fez um curso técnico de enfermagem.
Não teria capacidade de passar no vestibular de medicina.
E
foi assim que o tempo passou. Um piscar de olhos e eram vinte anos no
mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel
subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre
com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava
sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca.
Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver.
Dos
seus nove anos de idade aos nove anos de idade de Rafaela, o mundo
mudou muito. Invenções, tecnologia, leis, costumes, cultura. E
principalmente, ela mudou. Enterrou sua felicidade, enterrou seus
sonhos, enterrou a ambição de ser alguém. Tornou-se uma máquina
automática de empurrar mortos. Sempre com a roupa branca, o cabelo
preso, os olhos cansados.
Ana
e Samanta descobriram novamente o lençol que cobria o rosto da
menina. Samanta fez um carinho em seu rosto e se debulhou em
lágrimas. Ainda existia vida dentro dela. Rafaela e Ana não
poderiam chorar, eram iguais em seu estado de putrefação.
Então,
voltaram ao trabalho. Empurrar, com cuidado nos trechos íngremes.
Desviar dos buracos. Nos degraus, era um pouco mais difícil,
principalmente para quem puxa. Um pouco depois da metade, as luzes se
apagaram. Hora de parar. Esperar que subitamente os fios nunca
trocados daquele túnel retomassem o contato normal e voltassem a
funcionar.
Não
dessa vez. Ana se virou e começou a correr de volta para o hospital.
No escuro. Conhecia tão bem aquele espaço que provavelmente não
sofreria acidentes. Tropeçou em um degrau, porém, e o impacto de
seu rosto com o chão foi estonteante. Sentiu a pancada na boca,
arrancando-lhe dois dentes e deixando novas marcas de sangue no chão.
Mas não importava a dor. Só correr. E correr. E correr. E correr.
Correu
até chegar novamente à luz da sala onde esperavam os cadáveres. E
não parou. Passou pela porta, subiu escadas, outra porta, o saguão.
As pessoas olhavam para ela e não entendiam, mas no torpor da cidade
grande, ninguém tentou pará-la. A porta da rua veio. Uma avenida
movimentada em frente ao hospital. Tantas vezes fez o caminho de
volta, atravessando-a do necrotério, na faixa de pedestres, com o
semáforo fechado. Mas agora era o caminho contrário do que fizera
em toda a sua vida. Correu. Com o semáforo aberto, fora da faixa de
pedestres. Correu em direção ao primeiro ônibus que passava em
alta velocidade.
As
luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram
íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um
acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e
podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de
sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o
cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso.
Só não sabia, até Rafaela chegar, que estava morta.
O
impacto arrancou seus últimos dentes e arrebentou seus ossos,
jogando-a ao chão. Os freios foram acionados, mas não tiveram
capacidade de impedir que as rodas da frente passassem por cima de
sua cabeça, esmagando o crânio, fazendo um barulho que assustou
todos os passantes.
Os
pedestres e os motoristas pararam e olharam aquele mar de sangue. Em
breve, Samanta teria mais um cadáver para conduzir. Sozinha,
enquanto esperava uma nova contratada para a função.
Ali
embaixo, as luzes se reacenderam. Samanta sabia que algo estava
errado com Ana, mas já no fim do percurso, continuou levando Rafaela
sozinha. Chegou ao necrotério e não encontrou ninguém. Saiu dali,
chegou na rua e viu seus seus companheiros de café e cigarro em pé
na calçada, alguns em estado de choque.
A
equipe de resgate começava a raspar do chão os pedaços do cérebro
de Ana. Ia precisar de caixão fechado. Samanta soube que se tratava
da colega de trabalho.
E
chorou. Chorou porque ainda estava viva.