terça-feira, 6 de setembro de 2016

Orgulho em azul e amarelo


A Guerra do Kosovo foi um dos episódios mais lamentáveis da história recente da humanidade. Um genocídio étnico foi promovido pelo governo da então Iugoslávia contra a maioria de origem albanesa e muçulmana que habita aquela região.

Sempre houve uma divisão clara entre as etnias do lugar, com o ódio apenas crescendo com o tempo e se acirrando quando os demais países que formavam a Iugoslávia foram declarando a independência. O Kosovo historicamente era uma região albanesa, e desde que foi incorporado pelo Reino da Sérvia, em 1912, existia o sonho de reunificar a "grande Albânia". Inclusive, uma briga generalizada aconteceu nas últimas eliminatórias para a Eurocopa quando um drone sobrevoou o estádio em Belgrado com a bandeira da Albânia, resultando em punições para ambas as equipes.

Depois de anos com muito sangue derramado, o Kosovo declarou sua independência em 2008. Existia uma discussão sobre ser um estado independente ou se incorporar à Albânia, mas a primeira opção foi a escolhida. A ONU reconheceu a declaração em 2013, aceitando oficialmente o novo país como um membro.

Sangue derramado de tantos inocentes, paisagens devastadas, corações em frangalhos. Um lugar com tensão racial tão latente e uma opressão violenta que durou vários anos tem motivos claros para exaltar seus símbolos nacionais. Para o Brasil, para os Estados Unidos, para a maioria dos países ocidentais, a bandeira, o hino e as instituições que representam a nação não são um símbolo de resistência. Para o Kosovo, são.

Poder hastear a bandeira, cantar o hino e se dizer kosovar são representação de orgulho, de vitória. De ter superado os inimigos, de finalmente reconhecer que aquele é o seu canto, o seu pequeno espaço de pertencimento no mundo. O pedaço de chão que é daquela etnia, daquele povo que precisou perder tantos filhos para hoje ser livre.

E o esporte é a forma que um povo tem para ser visto mundialmente, para ter sua bandeira mostrada em rede mundial. Um dos maiores momentos das Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, foi a medalha de ouro de Majlinda Kelmendi no judô, a primeira da história do novo país. Quase todo mundo de fora daquele pedaço de chão que assistiu à cerimônia de premiação pôde ouvir pela primeira vez na vida o hino do Kosovo.

O hino do Kosovo não possui letra. É só uma melodia que representa tudo o que pode ser não dito, mas sentido sobre um país que sofreu tanto para ser um país. A relação das nações com seus hinos é fascinante, como no caso do Chile, que praticamente redefiniu o sentido dos versos finais após a sanguinária ditadura de Pinochet: que o la tumba serás de los libres o el asilo contra la opresión. Antes, só palavras. Depois, um grito de liberdade cantado a plenos pulmões.

Nesta segunda-feira, cinco de setembro de 2016, a seleção de futebol do Kosovo entrou em campo pela primeira vez para disputar um jogo oficial. Enfrentou a Finlândia, fora de casa, pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2018.

Boa parte dos jogadores kosovares defendia a seleção da Albânia, e não da Iugoslávia/Sérvia, antes da independência. Também existem casos de atletas vestindo a camisa da Suíça, até mesmo da Bélgica ou de outros países espalhados pela Europa. Mas, quando um novo país é oficialmente aceito pela ONU, atletas nascidos no lugar podem pedir para passar a defendê-lo. Muitos o fizeram, e puderam finalmente se sentir totalmente representados pela camisa que vestiam.

Valon Berisha foi o autor do primeiro gol oficial da seleção. Antes, ele defendia a Noruega: crescera no país, filho de refugiados kosovares. Aos 23 anos, marcou história na nação da qual seus pais foram obrigados a fugir.

Infelizmente, ainda esperaremos para ver esse time jogando realmente dentro de seu país em uma partida oficial, já que estádios no Kosovo ainda não foram liberados pela FIFA para esse propósito. Mas o mando será exercido na Albânia, onde uma grande comoção já é esperada quando a equipe enfrentar a Croácia, no próximo dia 6 de outubro.

A história recente do Kosovo é de dor, perdas e tragédia, mas o esporte é a forma que toda nação tem para tentar se reerguer e mostrar seu orgulho. Seja com uma medalha olímpica de ouro, seja com um empate fora de casa no primeiro jogo oficial de futebol, a tarefa tem sendo feita com sucesso. Hoje, o orgulho nacional floresce. A liberdade não existe só em cada praça do país, mas dentro das quatro linhas, onde uma camisa azul e amarela pode ser vestida e defendida.

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O palmeirense merece ser estudado pela antropologia



Seja sincero, torcedor,

Digamos que, hipoteticamente, seu time é líder do campeonato brasileiro. Já se mantem na posição há algumas rodadas e faz algumas belíssimas exibições, claramente acima da média do certame. Tem um excepcional poderio ofensivo, uma defesa segura e um ídolo no gol. Nada parece poder abalar a confiança.

Qual é seu pensamento? Que o título virá com quatro ou cinco rodadas de antecedência? Ok, eu diria que é normal.

Mas, ainda hipoteticamente, sem seu craque e artilheiro, que foi para a seleção brasileira, seu time perde duas partidas seguidas, ambas mostrando um futebol irreconhecível. Uma delas, para um time na zona de rebaixamento. Para piorar, o tal goleiro ídolo fratura o cotovelo e fica fora pelo restante do certame. E agora, o que pensar?

Provavelmente, o palmeirense é o único que entra em desespero e começa a cogitar que "vai ser difícil chegar aos 45 pontos".

O palmeirense é uma figura surreal. Ele é capaz da mais ingênua euforia, como o clássico "empolgou" de Paulo Nobre antes da trágica temporada de 2014, mas também do mais insensato desespero. Ele cria ídolos em questão de segundos e os vilaniza na mesma velocidade. Ele ainda é capaz de ser o mais sebastianista dos torcedores, sentindo saudades de figuras absolutamente comuns, implorando pelo retorno deles como salvadores da pátria, como foi com Kléber Gladiador ou Henrique.

Sim, a equipe foi muito mal em seus últimos dois embates. É normal que a confiança seja abalada, que o título não seja visto de forma tão palpável, que alguns fios de cabelo a mais caiam, que o sono demore mais para chegar. Mas não é normal pensar em rebaixamento, achar que todo o trabalho já feito é um lixo, que os jovens que vinham sendo fundamentais, de repente, se tornaram bagres.

Mas, porém, todavia, se o palmeirense é assim existe apenas um culpado: o Palmeiras.

O Palmeiras de alguns anos pra cá é uma entidade inexplicável. Liderar um campeonato é conviver intimamente com o fantasma de 2009. Perde quando tem tudo para ganhar, e quando tem tudo para perder, ganha com gol de Betinho. Não pode jogar um futebol vistoso e predestinado aos louros que é imediatamente assolado por lesões.

A perda de Fernando Prass é um tiro no coração. E pode nos custar o título. Vágner foi bem contra o Atlético Mineiro, em sua estreia, mas desastroso contra o Botafogo. Se continuar falhando, logo estaremos pedindo aos deuses que nos enviem um novo São Marcos. Mas agora, façamos a reflexão: em que outro time isso poderia acontecer?

Só no Palmeiras. Se Fernando Prass jogasse no Corinthians, no Flamengo ou no Santos, ele jamais se machucaria com o time da liderança, buscando diretamente o título. É como se houvessem muitos pecados que ainda precisam ser pagos para que a felicidade possa novamente tomar o palmeirense por completo.

Até que isso aconteça, o palmeirense segue sofrendo, segue sempre desconfiado, sempre esperando pela próxima tragédia. E sendo essa figura folclórica que rende textos como esse e certamente merece um estudo antropológico.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Maradona e Messi são frutos de seus tempos

Diego Maradona foi o típico anti-herói oitentista. Parece saído de um filme de Brian DePalma ou Martin Scorsese: usuário de drogas, acima do peso, amado mesmo com incontáveis defeitos. Foi capaz de vencer dentro dos campos de futebol uma guerra que a Argentina perdera nos campos de batalha, com um gol driblando até a rainha e outro usando a "mão de Deus".

Lionel Messi é o típico garoto desse início de século. Parece saído de um video-game: técnica perfeita, encantamento visto por televisores, coração de plástico. Campeoníssimo vestindo a camisa de seu clube, o Barcelona, parece sempre abaixo do seu melhor quando defende seu país. Não canta o hino, não parece ver que o simbolismo do futebol dentro de uma seleção nacional é muito maior, salvo raras exceções, que com os milhões envolvidos nas equipes europeias.
O encontro de gerações que pode salvar a seleção argentina.

Ambos são gênios com a bola nos pés e escreveram seus nomes entre os maiores que já praticaram esse esporte encantador. Mas não se pode tirar o homem de seu tempo. Talvez o menino quieto, tímido e de gelo não fizesse sucesso nos anos 80. Talvez o porra-louca polêmico e desregrado não chegasse às glórias nos anos 2000/10. Pode sempre existir um certo saudosismo à Meia-Noite em Paris em nossas vidas, porém, nunca seremos capazes de nos desvincularmos de tudo que o mundo à nossa volta nos transmite.

A seleção argentina não ergue um troféu desde 1993. Na Copa do Mundo do ano seguinte, vimos o brilho derradeiro de Maradona, que foi pego no anti-doping após um início animador e presenciou o definhamento de seu país. Seriam treze anos com destaques aquém do esperado de um país bi-campeão mundial até que Messi pudesse assumir o protagonismo em 2007. Como um messias, trouxe de volta as esperanças e foi visto como um salvador.

Quatro finais perdidas depois, ele se diz cansado. Mesmo sem a garra de Maradona, vê-se a tristeza clara em seu semblante, a dor e a pressão que caem sobre o maior jogador do planeta na atualidade de salvar a camisa albiceleste do poço das lamentações. Perder é difícil para quem é acostumado a erguer troféu atrás de troféu em Barcelona. As decepções da vida são muito mais complicadas para quem não está acostumado a tê-las.

Num universo paralelo onde o heroísmo ainda existe na geração playstation, Messi não deveria anunciar a aposentadoria da seleção argentina, mas sim do Barcelona. Reunir-se-ia em uma rotina de treinos com compatriotas interessados, preparando-se incessantemente para aterrizar na Rússia em busca de finalmente fechar sua jornada de herói. Mas por mais que nós, cronistas, tentemos conferir tons épicos ao universo esportivo, ele não funciona totalmente como gostaríamos.

Eis o que acontecerá neste mundo real, longe da literatura esportiva épica: Maradona, que envelheceu e se tornou, como boa parte dos anti-heróis oitentistas, um tiozão com ares de descolado, vai fazer o papel de mentor para Messi. O ex-craque já declarou, inclusive, que pretende conversar e tentar convencer que o jogador do Barcelona volte atrás. Vai demorar, mas quando a hora de embarcar para a Rússia estiver se aproximando, Lionel comunicará que aceita o chamado e sim, vai partir para a aventura.

Será a última chance, e seja com final feliz ou triste, renderá inúmeros textos para todos que vibram com o futebol. Messi poderá alcançar a glória e passar o resto da eternidade ao lado de Maradona no Hall dos Ídolos do Futebol Argentino, observando e abençoando sua nação, ou poderá ser mais uma vez derrotado, viver tristemente no exílio pensando que fracassou com todo um povo e não pode mais cruzar os mares tormentosos para sentir o carinho da terra natal. Isso tudo, é claro, no maravilhoso mundo das ideias.

Os homens podem ser frutos de suas épocas, mas o futebol é universal. Os gols de Maradona e de Messi serão vistos e apreciados por infinitas gerações. Só não se sabe ainda qual será o estigma que virá junto com os do segundo.

sábado, 25 de junho de 2016

Domingos de vingança

Esse texto contém spoilers sobre o nono episódio da sexta temporada de Game of Thrones.

No último domingo, 19 de junho de 2016, o mundo assistiu uma grande história de vingança. A família Stark retomou sua casa, Winterfell, e a jovem Sansa deu o vilão Ramsay Bolton para os cães comerem no seriado Game of Thrones. Foram três anos de expectativa - ao menos na contagem do mundo real - dos fãs dessa história ficcional para que seus queridos personagens fossem devidamente vingados.

Exatamente uma semana depois, a expectativa é por outra batalha que pode se encerrar com o doce gosto da vingança e da justiça.

A famosa mão de Thierry Henry

O estádio Parc Olympique Lyonnais, em Lyon, recebe o confronto entre França e Irlanda, válido pelas oitavas de final da Eurocopa. Será a primeira vez que as duas seleções se enfrentarão desde o duelo da mão de Thierry Henry, que classificou os franceses e eliminou os irlandeses da Copa do Mundo de 2010. Um episódio que, com certeza, é tão entalado na garganta da nação insular como a perda de Winterfell dos fãs de Game of Thrones.

Em 18 de novembro de 2009, o confronto foi em Saint-Dennis, na capital francesa, e valia uma vaga para o mundial da África do Sul. Na prorrogação, com a equipe de verde dominando as ações, Henry ajeitou uma bola claramente com o braço para que o zagueiro William Gallas selasse o passaporte da França para a terra de Nelson Mandela. A arbitragem não viu, os pedidos de anulação da partida foram ignorados e a mágoa se abateu sobre o futebol irlandês.

A França não é futebolisticamente tão abjeta como a família Bolton na ficção, mas cai sobre ela o papel de vilã. E sendo um duelo de grande contra pequeno, de campeã mundial contra país que não frequenta um mundial desde 2002, as proporções da batalha do próximo domingo se assemelham ao que vimos no seriado, quando os Stark marcharam em número infinitamente menor para tentar recuperar suas terras, sua honra e sentir o sabor da vingança.

É nessas horas que o futebol impressiona. Por mais que o jogo valha muito para a França - uma grande competição dentro de casa sempre mobiliza um país emocionalmente - para os irlandeses é possivelmente o grande dia das carreiras desses jogadores. Restaurar uma injustiça em um estádio tomado pela torcida adversária, que é bem superior tecnicamente. É o dia de dar o sangue, de suar até as últimas gotas, de deixar a alma dentro de campo. Se fosse uma guerra, muitos se sacrificariam.

Porque o que faz do esporte algo tão incrível é que a qualquer momento é possível vencer. A Islândia, com seus 330.000 habitantes e 100 jogadores profissionais, vem mostrando isso. E assim, nossas vidas são inspiradas. Nada é impossível. Seguimos em frente porque temos objetivos. As probabilidades podem estar contrárias, mas a virada pode ser no dia de amanhã. Como 2.000 homens podem vencer 5.000 em uma batalha. Não é sempre que vai acontecer, mas não se deixa de lutar.

Os Stark retomaram Winterfell contra as probabilidades. Ramsay foi devorado pelos cachorros. No domingo, a França é a vilã dos irlandeses. Se eles saírem de campo vitoriosos pode ser mais uma dessas histórias marcantes, que podem virar filme algum tempo depois.

 Só resta saber quem pode ser o Mindinho da batalha de Lyon.

sábado, 11 de junho de 2016

O exército francês e as guerras modernas

Payet, o novo herói nacional francês
As guerras sempre fizeram parte da humanidade. Boa parte das aulas de história quando estamos na escola são dedicadas a elas. Fosse por território, por religião, por bens materiais, por ideologia ou por diversos outros motivos, os países constantemente se colocavam em novas disputas contra seus vizinhos ou, em tempos mais modernos e com maiores facilidades de transporte, lugares distantes. Nada funcionou tanto em forjar algo como uma "identidade nacional" para os pedaços de terra que foram demarcados e redermarcados como as nações do planeta Terra.

Estamos 80 anos distantes da última grande guerra e boa parte dos países do mundo (exceto na África, que ainda vive num caos bélico eterno graças à partilha surreal feita pelos europeus no século XIX e algumas outras exceções) vive no que, pelo menos nesse sentido, pode ser definido como paz. Nesse meio tempo, o esporte cresceu consideravelmente em popularidade. Os megaeventos, como a Copa do Mundo, as Olimpíadas e a Eurocopa, passaram a fazer o papel de, a cada esporádicos períodos de tempo, gerar patriotismo intenso.

Poucas coisas são mais bonitas que o momento da execução dos hinos antes dos jogos entre seleções nas competições de futebol ou nas cerimônias de medalhas dos jogos olímpicos. Atletas e público entoam a plenos pulmões. Muitos choram. Quando é tocada uma versão mais curta, continuam à capella. Os países podem estar em plena efervescência política interna, mas quando um atleta defende sua terra contra os rivais estrangeiros, essa estranha união volta a tomar conta de todos os habitantes de uma nação.

Atletas são os soldados modernos. Não precisam dar a vida por seus países, mas muitas vezes dão o sangue. Nas grandes disputas futebolísticas, em maioria não são pobres enviados pelo governo para a morte, como já cantava o Black Sabbath no clássico War Pigs:

"Politicians hide themselves away
They only started the war
Why should they go out to fight?
They leave that role to the poor"

Não. Quando vemos um torneio como a Eurocopa, que começou nessa sexta-feira, vemos jogadores com a vida ganha. Os salários deles são monstruosos. Mas uma coisa permanece: majoritariamente, são oriundos das camadas populares.

Tudo isso foi uma introdução para chegar na França de hoje. Provavelmente não há país mais cheio de refugiados. O domínio sobre o norte da África fez com que muitos jovens imigrassem para lá. E muitos outros se refugiassem das guerras, que como dito anteriormente, ainda são constantes nessa parte dominada do mundo. Mas atualmente, tudo é ainda mais cosmopolita. O filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2015, "Dheepan", nos mostra pessoas fugindo do Sri Lanka e tentando a vida ilegalmente em terras francesas, por exemplo.

Os bairros pobres de imigrantes se acumulam em torno das cidades francesas, sempre com uma paixão em comum: a bola. Não importa se cristão, muçulmano, hindu ou de qualquer outra crença religiosa, crianças crescem com o sonho de jogar futebol. Isso nos leva ao fenômeno visto na seleção francesa atual: não há praticamente nenhum jogador de origem ou descendência local. Quase nenhum jogador que seria considerado pelas elites um "francês puro".

Isso gera preconceito e racismo. Karim Benzema, possivelmente o principal jogador francês da atualidade, não disputa a Eurocopa por motivos extra-campo. O principal deles é ter extorquido o companheiro de seleção Mathieu Valbuena após ter acesso a uma sextape do colega, mas não podemos deixar de lado o atrito sobre a recusa do centro-avante do Real Madrid em cantar a tradicional Marselhesa, hino nacional francês, que é absurdamente ofensivo a toda essa população estrangeira que defende as cores da França.

"Nossa terra do sangue impuro se saciará".

Benzema diz que "quando joga bem é francês, quando joga mal é um árabe filho da puta". E pra quem mais os dezenas de milhares de franceses que pagaram até 565 euros pra ver a abertura da Eurocopa hoje torcem? Paul Pogba é filho de guineanos. Blaise Matuidi, de angolanos. Kingsley Coman, de guadalupenses. Muito "sangue impuro". Jovens que, se não fossem extremamente talentosos com a bola, estariam sofrendo racismo e violência nos subúrbios das cidades francesas.

Hoje, são os heróis da "identidade nacional".

A França venceu a Romênia por 2 a 1. Empatava até os 44 minutos do segundo tempo, quando Dimitri Payet, que já vinha sendo de longe o melhor jogador em campo, acertou um petardo de fora da área para dar a vitória aos anfitriões. O meia-atacante do West Ham United foi substituído em seguida e saiu de campo aplaudido de pé. E em prantos.

Desde já, uma das cenas mais emocionantes - e emblemáticas da Eurocopa 2016.

Mas seria Dimitri Payet um "francês puro"? Não. Ele nasceu na Ilha Reunião, perto de Madagascar, até hoje uma colônia francesa na qual 42% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza.

Por enquanto, Payet é o herói nacional, vindo de longe, responsável pela vitória na batalha de Saint Denis. Mas e quando ele errar? Até quando a população o abraçará como alguém a ser louvado?

Em parte considerável do mundo, é mais fácil ver como o esporte desenha a questão da identidade nacional no lugar das guerras. Quando a seleção kosovar entrar em campo nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018 certamente teremos um momento histórico de união em torno de uma bandeira. Mas, na França, isso aparentemente passa longe de existir. E as pessoas que pagam esses 565 euros para ver a legião de negros das colônias jogando futebol muitas vezes reproduzem costumes das antigas feiras de aberrações, tão comuns na Europa do Século XIX - "Vênus Negra", filme de Abdellatif Kechiche, é outro que ajuda a ilustrar o painel geral aqui.

De qualquer forma, a torcida é que a França possa realmente se unir durante a Eurocopa. Um país em caos étnico, na qual uma revista faz desenhos racistas e em seguida sofre atentado a bomba. Um título continental dessa seleção de filhos de imigrantes pode ajudar a repensar essa identidade nacional e forjar um país mais igualitário? Nunca devemos duvidar do poder do futebol.

Por enquanto, tudo parece falso. Benzema tem razão em não cantar esse hino junto com tantos milhares que odeiam sua raça, sua religião, sua origem. E o choro de Payet representa não só uma conquista pessoal, mas de todo um povo - quando é que alguém de Reunião poderia ser herói nacional?

Coisas que o esporte nos proporciona. Talvez seja a única saída. Para muitos, é.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O Túnel

As luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso.

Vinte anos no mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca. Ela era quem empurrava, o trabalho mais fácil e menos suscetível às quedas. Do outro lado, ficava Luiza, uma senhora que nunca foi de muitas palavras, manobrando de costas aquele cotejo desconhecido de todo o mundo.

Quando Ana chegou no hospital, Luiza já estava ali. E nunca foi de falar, de questionar ou de reclamar. Nem de contar sua vida. Pouco se sabia sobre ela, nem mesmo se era casada, se tinha filhos, se era do estado de São Paulo. Só que tinha medo dos barulhos e costumava se assustar. E que vinha doente nos últimos tempos, faltando muito do trabalho, fazendo com que o caminho demorasse o dobro do tempo e o risco de acidentes fosse muito maior. Até que, ouviu-se nos corredores do hospital, tinha morrido. Ana nem pôde se importar muito, só esperar que alguma enfermeira nova a fosse ajudar a empurrar a maca dos mortos.

Foram três dias de penúria e de solidão no túnel até que Samanta chegou. Jovem e bonita, estudante de enfermagem que achou que aquele seria um estágio interessante. Falante, mostrando as unhas pintadas, perguntando da vida de Ana. Era uma pessoa muito diferente de Luiza, já era possível perceber nos primeiros minutos.

Mas existia algumas coisas que Samanta não sabia. Que as luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Que os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial.

Não seria fácil aprender tudo isso.

O primeiro foi um homem de cerca de setenta anos. Câncer de estômago. Pessoas tem morrido cada vez mais de câncer. E sempre que acontece, precisa-se das máscaras.

Ana tomou sua posição de sempre e foi empurrando. Samanta tomava cuidado com os degraus, como um jogador de futebol fazendo reconhecimento de um gramado esburacado. Colocava o primeiro pé com cuidado, o segundo ia mais facilmente. Os duzentos metros foram percorridos em um tempo maior que o esperado, mas sem sustos. Nem mesmo os barulhos do andar de cima vieram. As luzes não se apagaram. O primeiro morto da novata foi um sucesso. Do outro lado, cumprimentos da equipe do necrotério.

Um café, um cigarro, novos restos humanos a serem entregados para o além. Enquanto levavam uma mulher de trinta e poucos anos, morta no parto, um homem de vinte, baleado, e uma mulher de cinquenta, câncer de pulmão, trocaram mais palavras do que Ana jamais havia trocado com Luiza. Samanta namorava um motoboy fazia três anos e planejava se casar. Morava junto com ele em um bairro distante e era necessário dois ônibus para chegar ao trabalho. Achava que, terminando o curso técnico em enfermagem, teria uma vida melhor.

Dez cadáveres no primeiro dia. Hora de ir para casa.

Samanta aprendia rápido e em poucas semanas já não se assustava mais com as luzes se apagando e se acendendo, começava a decorar onde havia buracos, degraus ou manchas de sangue e se acostumar com os barulhos que pareciam vir do além. Ela ainda não era experiente, mas certamente ia nesse caminho. Será que seria toda uma vida ali, como a de Ana? Quantos cadáveres? Quantas causas de morte?

Leptospirose, peste bulbônica, decapitação, suicídio por enforcamento, suicídio por envenenamento, suicídio por tiro, briga conjugal, neurosífilis, dengue hemorrágica, raiva, todos os tipos de câncer, todos os tipos de assassinato. Quantos prontuários. Quantas máscaras. Nunca sabia os nomes, só empurrava. Chegava do outro lado, conversava com o pessoal do necrotério, subia as escadas, atravessava a rua, voltava a esperar. Com Samanta, começou até a brincar de adivinhar a idade, o sexo e o que acometera o próximo falecido.

Quinta-feira à tarde, noite chuvosa de março. Uma criança de nove anos que caíra do sétimo andar em circunstâncias estranhas. Estava o tempo todo na televisão, Rafaela era o nome, a polícia investigava se os pais poderiam ter algo a ver. A opinião pública já pedia pela condenação imediata, mas imagens de circuito do prédio não mostravam ninguém na varanda no momento da queda. Parecia um improvável suicídio e a polícia já descartava culpa de alguma outra pessoa. Passou dois dias no hospital, os médicos tentaram de tudo, mas a menina tinha acabado de deixar sua vida ali, dois andares acima do túnel. Agora, seria mais um número na vida de Ana e Samanta.

Não costumavam olhar o rosto, todas as informações vinham do prontuário. O lençol branco cobria a todos que passavam por aquela maca. Mas, no caso de Rafaela, a curiosidade foi maior. Pela primeira vez, levantaram o pano branco. Olharam o corpo. Os ossos quebrados, as escoriações, o rosto angelical. Era uma menina bonita, loira e de olhos azuis. Provavelmente teria uma vida confortável com sua família de classe média. A não ser que passasse por um inferno pessoal. A não ser que as circustâncias estranhas de sua morte fossem as piores possíveis. A não ser que, aos nove anos de idade, a morte tivesse sido o melhor caminho.

Ana sentiu um peso inédito ao começar a empurrar aquela maca pelo túnel. Nos seus vinte anos de trabalho, jamais vivera algo parecido. Era o mais próximo de um luto por alguém naquela situação que poderia experimentar. Engolia seco, pensava em todos os rumos que sua vida poderia ter tomado, pensava em porque nunca tinha tentado ir embora dali, recomeçar em outro emprego. Pessoas idosas morrem de câncer o tempo todo, mas pela primeira vez via uma criança que possivelmente se suicidou. Quando olhou nos olhos de Rafaela, era como se sua alma se esvaísse junto com a da pequena.

A expressão era macabra, e também era a de Samanta. Nos primeiros metros do túnel, pararam de conduzir. Ana pensava que alguma força do além, a mesma que às vezes era confundida com os barulhos do andar de cima, deveria interferir. Mas os barulhos do andar de cima eram só barulhos corriqueiros do mundo dos vivos. Não eram forças do além. Nunca um morto se levantou. Nunca um fantasma gerou uma situação escabrosa ali no mundo subterrâneo. Ana acreditava em Deus, mas não mais que ele interferia nesse lugar.

Pensou em chorar, mas não era mais possível. Rafaela estava morta, ela também estava. Vinte anos empurrando macas com cadáveres em um túnel subterrâneo. Cafés, cigarros, conversas com o pessoal do necrotério. Pobre Samanta, pensava, começando naquele emprego. Em breve, não teria mais sonhos nem aspirações. Em breve, estaria morta como ela.

Quando tinha nove anos de idade, era uma criança feliz. Brincava com bonecas dadas pelos tios com melhor condição financeira e sonhava em ser médica. Nunca foi popular na escola. Nunca teve grandes amigas. E nunca tirou boas notas. Aos quinze, assumiu que era uma pessoa medíocre e que não iria a lugar nenhum. Terminou o ensino médio e, por pressão dos pais, fez um curso técnico de enfermagem. Não teria capacidade de passar no vestibular de medicina.

E foi assim que o tempo passou. Um piscar de olhos e eram vinte anos no mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca. Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver.

Dos seus nove anos de idade aos nove anos de idade de Rafaela, o mundo mudou muito. Invenções, tecnologia, leis, costumes, cultura. E principalmente, ela mudou. Enterrou sua felicidade, enterrou seus sonhos, enterrou a ambição de ser alguém. Tornou-se uma máquina automática de empurrar mortos. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados.

Ana e Samanta descobriram novamente o lençol que cobria o rosto da menina. Samanta fez um carinho em seu rosto e se debulhou em lágrimas. Ainda existia vida dentro dela. Rafaela e Ana não poderiam chorar, eram iguais em seu estado de putrefação.

Então, voltaram ao trabalho. Empurrar, com cuidado nos trechos íngremes. Desviar dos buracos. Nos degraus, era um pouco mais difícil, principalmente para quem puxa. Um pouco depois da metade, as luzes se apagaram. Hora de parar. Esperar que subitamente os fios nunca trocados daquele túnel retomassem o contato normal e voltassem a funcionar.

Não dessa vez. Ana se virou e começou a correr de volta para o hospital. No escuro. Conhecia tão bem aquele espaço que provavelmente não sofreria acidentes. Tropeçou em um degrau, porém, e o impacto de seu rosto com o chão foi estonteante. Sentiu a pancada na boca, arrancando-lhe dois dentes e deixando novas marcas de sangue no chão. Mas não importava a dor. Só correr. E correr. E correr. E correr.

Correu até chegar novamente à luz da sala onde esperavam os cadáveres. E não parou. Passou pela porta, subiu escadas, outra porta, o saguão. As pessoas olhavam para ela e não entendiam, mas no torpor da cidade grande, ninguém tentou pará-la. A porta da rua veio. Uma avenida movimentada em frente ao hospital. Tantas vezes fez o caminho de volta, atravessando-a do necrotério, na faixa de pedestres, com o semáforo fechado. Mas agora era o caminho contrário do que fizera em toda a sua vida. Correu. Com o semáforo aberto, fora da faixa de pedestres. Correu em direção ao primeiro ônibus que passava em alta velocidade.

As luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso. Só não sabia, até Rafaela chegar, que estava morta.

O impacto arrancou seus últimos dentes e arrebentou seus ossos, jogando-a ao chão. Os freios foram acionados, mas não tiveram capacidade de impedir que as rodas da frente passassem por cima de sua cabeça, esmagando o crânio, fazendo um barulho que assustou todos os passantes.

Os pedestres e os motoristas pararam e olharam aquele mar de sangue. Em breve, Samanta teria mais um cadáver para conduzir. Sozinha, enquanto esperava uma nova contratada para a função.

Ali embaixo, as luzes se reacenderam. Samanta sabia que algo estava errado com Ana, mas já no fim do percurso, continuou levando Rafaela sozinha. Chegou ao necrotério e não encontrou ninguém. Saiu dali, chegou na rua e viu seus seus companheiros de café e cigarro em pé na calçada, alguns em estado de choque.

A equipe de resgate começava a raspar do chão os pedaços do cérebro de Ana. Ia precisar de caixão fechado. Samanta soube que se tratava da colega de trabalho.


E chorou. Chorou porque ainda estava viva.