terça-feira, 15 de setembro de 2015

Hora da Aventura

Cheio de dúvidas sobre a vida dos adultos, o amor e o relacionamento com a primeira namorada, um menino de doze anos recebe de um mago um saquinho com versões em miniatura de todos os integrantes de seu círculo social. Em casa, ele começa a brincar com as pessoinhas, formando casais aleatórios, como ele mesmo e a namorada do melhor amigo, muito mais velho e o mais próximo de uma figura paterna que possui. O resultado é um caos absoluto e pura depressão entre as miniaturas.

Essa é a sinopse de um dos episódios censurados no Brasil de Hora da Aventura. Um desenho animado aparentemente para crianças, que funciona para as crianças, que é amado pelas crianças. Mas que esconde nas entrelinhas tanta complexidade que o faz extremamente popular também entre os adultos.

Porque apesar de engraçado, divertido e de linguagem fácil, Hora da Aventura não é só mais um desenho animado. É uma análise brutal do mundo moderno. Fala sobre relacionamentos, sobre figuras familiares, sobre álcool, drogas, relações homoafetivas, problemas da adolescência, puberdade, questões que vão muito além do que as crianças conseguem ver.

Finn não conheceu seu pai, mas seu melhor amigo Jake é um pai ausente também. A princesa jujuba tortura suas criações e tem um relacionamento mal resolvido com Marceline. O rei gelado sequestra mulheres. A princesa de fogo entra em combustão quando passa por emoções fortes.

E há as referências a drogas. Elas estão por toda parte. Em um episódio, Finn diz que vai ficar "louco de inteligência", ingere uma substância que ativa a sua glândula pineal e em seguida vê tudo de forma distorcida. Em outro, diz que precisa ficar sozinho para pensar sobre a vida, acaba entrando em um mundo de travesseiros falantes do qual não consegue sair.

A maior beleza de Hora da Aventura é como o seriado consegue ser visto de forma ingênua e divertida pelas crianças e de forma complexa pelos adultos, com o mesmo texto e a mesma imagem. Uma história inocente que não é nada inocente. Personagens divertidos que são, na verdade, atormentados e cheios de fantasmas.

Eu não acho que exista um outro seriado com tanta capacidade de ser dois em um. E que trate com tanta sutileza de temas delicados, escondendo as referências para serem captadas apenas para quem já tem a vivência suficiente para pegá-las. E é por isso que num mundo com tantas produções densas, cheias de personagens complexos, mas já planejadas para adultos e sem esconder o jogo, nada tem tantos méritos nessa execução como a série criada por Pendleton Ward.

É possível comparar, inclusive, com esse texto, que eu queria que fosse leve e divertido. Falhei miseravelmente. É muito difícil escrever para dois públicos tão distintos ao mesmo tempo. Ainda mais quando um deles não percebe o conteúdo destinado ao outro. Fiz uma análise sem alívios cômicos ou qualquer coisa do tipo porque, apesar de gargalhar a cada episódio de Hora da Aventura que vejo, sempre termino comentando "isso foi muito pesado".

Eu sinceramente acho que se trata da melhor série de televisão que já existiu. E sim, comparando com coisas como Game of Thrones, Twin Peaks, Breaking Bad ou o que quer que você (e eu também) ache magnífico.

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

que horas ela volta?



de um lado, a família rica. uma casa gigantesca no morumbi, viagens pelo mundo, roupas caras, utensílios ainda mais. suco de lima da pérsia, sorvete exclusivo para o filho. a redoma de vidro da elite brasileira.

do outro lado, a classe trabalhadora. a mulher que deixa a filha no nordeste e vem sozinha para são paulo, vem trabalhar de forma incansável, vem servir. deixando sua existência de lado, pode enviar dinheiro pra região mais pobre do país. sabendo onde é o seu lugar, pode até ser considerada "praticamente da família".

eu disse "do outro lado". é um erro. em "que horas ela volta?", elas estão dividindo o mesmo ambiente. é a história de uma elite que subjuga os mais pobres, tratando-os como animais exóticos feitos para servi-los.

muita gente considera que o filme de anna muylaert, em cartaz nos cinemas brasileiros, é um estudo de personagens. sim, é. mas não só isso. mais importante: é o estudo de um país em transformação. é uma radiografia de uma situação sócio-econômica que temos visto cada vez mais presente no dia-a-dia.

val, brilhantemente interpretada por regina casé, é a empregada doméstica que mora no trabalho, no quarto dos fundos, sendo vista com aquela benevolência condescendente de seus patrões, "coitada, ela é tão boa, até parece que é gente". o conflito começa quando sua filha, que teve acesso à informação, que cresceu em um país em processo de mudança, chega no mesmo ambiente. uma pessoa com a mesma origem, mas com bagagem totalmente diferente.

val é a figura do pobre nordestino que cresceu nos anos 70, na ditadura militar, num país que os pobres poderiam almejar não passar fome vivendo no quarto dos fundos, sabendo qual era o seu lugar. jéssica, sua filha, é a figura do pobre nordestino que cresceu nos anos 2000, com o país sendo transformado, com condições de prestar vestibular, de viajar de avião, de ter uma chance, mesmo que ainda mínima, de desafiar essas estruturas sociais.

e o que nós vemos com a chegada de jéssica é até onde vai a benevolência condescendente da elite. e é onde vemos a elite se incomodando com a menina que veio do nordeste disputando vaga na usp com seus filhos. é onde vemos a elite se incomodando com dividir espaço no avião com quem antes pegava ônibus clandestino. é onde vemos todo esse incômodo de quem se sente ameaçado, de quem vê a redoma de vidro sendo invadida.

a família que emprega val é o retrato da elite paulistana, do "bandido bom é bandido morto", da indignação com corredores de ônibus, dos protestos nas ruas com micaretas e selfies com a polícia militar. "que horas ela volta?" é o retrato do contraste social de um país que almeja ser diminuído, gerando esse incômodo, esse nojinho, em quem sempre pôde se considerar superior.

"que horas ela volta?" é provavelmente o filme brasileiro mais importante dos últimos anos. porque provavelmente nenhum outro foi tão eficiente e tão sutil em radiografar o país. e esse ponto - a sutileza - também é fundamental. não é necessário ser ultra-dramático ou gerar situações que expõem seus personagens ao sofrimento extremo, como outros cineastas fariam. um ambiente pequeno e o cotidiano são mais que suficientes.

elogiado ao extremo pela crítica americana, talvez chegue até ao oscar. seria incrível ver o filme de muylaert premiado internacionalmente. não só pela obra excepcional que é, mas também pela sua importância em um momento tão delicado do brasil.