terça-feira, 26 de janeiro de 2016

O Túnel

As luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso.

Vinte anos no mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca. Ela era quem empurrava, o trabalho mais fácil e menos suscetível às quedas. Do outro lado, ficava Luiza, uma senhora que nunca foi de muitas palavras, manobrando de costas aquele cotejo desconhecido de todo o mundo.

Quando Ana chegou no hospital, Luiza já estava ali. E nunca foi de falar, de questionar ou de reclamar. Nem de contar sua vida. Pouco se sabia sobre ela, nem mesmo se era casada, se tinha filhos, se era do estado de São Paulo. Só que tinha medo dos barulhos e costumava se assustar. E que vinha doente nos últimos tempos, faltando muito do trabalho, fazendo com que o caminho demorasse o dobro do tempo e o risco de acidentes fosse muito maior. Até que, ouviu-se nos corredores do hospital, tinha morrido. Ana nem pôde se importar muito, só esperar que alguma enfermeira nova a fosse ajudar a empurrar a maca dos mortos.

Foram três dias de penúria e de solidão no túnel até que Samanta chegou. Jovem e bonita, estudante de enfermagem que achou que aquele seria um estágio interessante. Falante, mostrando as unhas pintadas, perguntando da vida de Ana. Era uma pessoa muito diferente de Luiza, já era possível perceber nos primeiros minutos.

Mas existia algumas coisas que Samanta não sabia. Que as luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Que os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial.

Não seria fácil aprender tudo isso.

O primeiro foi um homem de cerca de setenta anos. Câncer de estômago. Pessoas tem morrido cada vez mais de câncer. E sempre que acontece, precisa-se das máscaras.

Ana tomou sua posição de sempre e foi empurrando. Samanta tomava cuidado com os degraus, como um jogador de futebol fazendo reconhecimento de um gramado esburacado. Colocava o primeiro pé com cuidado, o segundo ia mais facilmente. Os duzentos metros foram percorridos em um tempo maior que o esperado, mas sem sustos. Nem mesmo os barulhos do andar de cima vieram. As luzes não se apagaram. O primeiro morto da novata foi um sucesso. Do outro lado, cumprimentos da equipe do necrotério.

Um café, um cigarro, novos restos humanos a serem entregados para o além. Enquanto levavam uma mulher de trinta e poucos anos, morta no parto, um homem de vinte, baleado, e uma mulher de cinquenta, câncer de pulmão, trocaram mais palavras do que Ana jamais havia trocado com Luiza. Samanta namorava um motoboy fazia três anos e planejava se casar. Morava junto com ele em um bairro distante e era necessário dois ônibus para chegar ao trabalho. Achava que, terminando o curso técnico em enfermagem, teria uma vida melhor.

Dez cadáveres no primeiro dia. Hora de ir para casa.

Samanta aprendia rápido e em poucas semanas já não se assustava mais com as luzes se apagando e se acendendo, começava a decorar onde havia buracos, degraus ou manchas de sangue e se acostumar com os barulhos que pareciam vir do além. Ela ainda não era experiente, mas certamente ia nesse caminho. Será que seria toda uma vida ali, como a de Ana? Quantos cadáveres? Quantas causas de morte?

Leptospirose, peste bulbônica, decapitação, suicídio por enforcamento, suicídio por envenenamento, suicídio por tiro, briga conjugal, neurosífilis, dengue hemorrágica, raiva, todos os tipos de câncer, todos os tipos de assassinato. Quantos prontuários. Quantas máscaras. Nunca sabia os nomes, só empurrava. Chegava do outro lado, conversava com o pessoal do necrotério, subia as escadas, atravessava a rua, voltava a esperar. Com Samanta, começou até a brincar de adivinhar a idade, o sexo e o que acometera o próximo falecido.

Quinta-feira à tarde, noite chuvosa de março. Uma criança de nove anos que caíra do sétimo andar em circunstâncias estranhas. Estava o tempo todo na televisão, Rafaela era o nome, a polícia investigava se os pais poderiam ter algo a ver. A opinião pública já pedia pela condenação imediata, mas imagens de circuito do prédio não mostravam ninguém na varanda no momento da queda. Parecia um improvável suicídio e a polícia já descartava culpa de alguma outra pessoa. Passou dois dias no hospital, os médicos tentaram de tudo, mas a menina tinha acabado de deixar sua vida ali, dois andares acima do túnel. Agora, seria mais um número na vida de Ana e Samanta.

Não costumavam olhar o rosto, todas as informações vinham do prontuário. O lençol branco cobria a todos que passavam por aquela maca. Mas, no caso de Rafaela, a curiosidade foi maior. Pela primeira vez, levantaram o pano branco. Olharam o corpo. Os ossos quebrados, as escoriações, o rosto angelical. Era uma menina bonita, loira e de olhos azuis. Provavelmente teria uma vida confortável com sua família de classe média. A não ser que passasse por um inferno pessoal. A não ser que as circustâncias estranhas de sua morte fossem as piores possíveis. A não ser que, aos nove anos de idade, a morte tivesse sido o melhor caminho.

Ana sentiu um peso inédito ao começar a empurrar aquela maca pelo túnel. Nos seus vinte anos de trabalho, jamais vivera algo parecido. Era o mais próximo de um luto por alguém naquela situação que poderia experimentar. Engolia seco, pensava em todos os rumos que sua vida poderia ter tomado, pensava em porque nunca tinha tentado ir embora dali, recomeçar em outro emprego. Pessoas idosas morrem de câncer o tempo todo, mas pela primeira vez via uma criança que possivelmente se suicidou. Quando olhou nos olhos de Rafaela, era como se sua alma se esvaísse junto com a da pequena.

A expressão era macabra, e também era a de Samanta. Nos primeiros metros do túnel, pararam de conduzir. Ana pensava que alguma força do além, a mesma que às vezes era confundida com os barulhos do andar de cima, deveria interferir. Mas os barulhos do andar de cima eram só barulhos corriqueiros do mundo dos vivos. Não eram forças do além. Nunca um morto se levantou. Nunca um fantasma gerou uma situação escabrosa ali no mundo subterrâneo. Ana acreditava em Deus, mas não mais que ele interferia nesse lugar.

Pensou em chorar, mas não era mais possível. Rafaela estava morta, ela também estava. Vinte anos empurrando macas com cadáveres em um túnel subterrâneo. Cafés, cigarros, conversas com o pessoal do necrotério. Pobre Samanta, pensava, começando naquele emprego. Em breve, não teria mais sonhos nem aspirações. Em breve, estaria morta como ela.

Quando tinha nove anos de idade, era uma criança feliz. Brincava com bonecas dadas pelos tios com melhor condição financeira e sonhava em ser médica. Nunca foi popular na escola. Nunca teve grandes amigas. E nunca tirou boas notas. Aos quinze, assumiu que era uma pessoa medíocre e que não iria a lugar nenhum. Terminou o ensino médio e, por pressão dos pais, fez um curso técnico de enfermagem. Não teria capacidade de passar no vestibular de medicina.

E foi assim que o tempo passou. Um piscar de olhos e eram vinte anos no mesmo emprego: conduzir os mortos do hospital em um túnel subterrâneo de cerca de duzentos metros até o necrotério. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados. Esperava sentada até que algum médico trouxesse o próximo cadáver na maca. Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver. Outro cadáver.

Dos seus nove anos de idade aos nove anos de idade de Rafaela, o mundo mudou muito. Invenções, tecnologia, leis, costumes, cultura. E principalmente, ela mudou. Enterrou sua felicidade, enterrou seus sonhos, enterrou a ambição de ser alguém. Tornou-se uma máquina automática de empurrar mortos. Sempre com a roupa branca, o cabelo preso, os olhos cansados.

Ana e Samanta descobriram novamente o lençol que cobria o rosto da menina. Samanta fez um carinho em seu rosto e se debulhou em lágrimas. Ainda existia vida dentro dela. Rafaela e Ana não poderiam chorar, eram iguais em seu estado de putrefação.

Então, voltaram ao trabalho. Empurrar, com cuidado nos trechos íngremes. Desviar dos buracos. Nos degraus, era um pouco mais difícil, principalmente para quem puxa. Um pouco depois da metade, as luzes se apagaram. Hora de parar. Esperar que subitamente os fios nunca trocados daquele túnel retomassem o contato normal e voltassem a funcionar.

Não dessa vez. Ana se virou e começou a correr de volta para o hospital. No escuro. Conhecia tão bem aquele espaço que provavelmente não sofreria acidentes. Tropeçou em um degrau, porém, e o impacto de seu rosto com o chão foi estonteante. Sentiu a pancada na boca, arrancando-lhe dois dentes e deixando novas marcas de sangue no chão. Mas não importava a dor. Só correr. E correr. E correr. E correr.

Correu até chegar novamente à luz da sala onde esperavam os cadáveres. E não parou. Passou pela porta, subiu escadas, outra porta, o saguão. As pessoas olhavam para ela e não entendiam, mas no torpor da cidade grande, ninguém tentou pará-la. A porta da rua veio. Uma avenida movimentada em frente ao hospital. Tantas vezes fez o caminho de volta, atravessando-a do necrotério, na faixa de pedestres, com o semáforo fechado. Mas agora era o caminho contrário do que fizera em toda a sua vida. Correu. Com o semáforo aberto, fora da faixa de pedestres. Correu em direção ao primeiro ônibus que passava em alta velocidade.

As luzes se apagavam e se acendiam subitamente, os caminhos eram íngremes e os poucos degraus tinham falhas que podiam levar a um acidente a qualquer momento. Os barulhos vinham dos andares de cima e podiam ser confundidos com manifestações do além, as manchas de sangue não eram limpas há mais de uma década e, às vezes, o cheiro exigia o uso de uma máscara especial. Ana sabia de tudo isso. Só não sabia, até Rafaela chegar, que estava morta.

O impacto arrancou seus últimos dentes e arrebentou seus ossos, jogando-a ao chão. Os freios foram acionados, mas não tiveram capacidade de impedir que as rodas da frente passassem por cima de sua cabeça, esmagando o crânio, fazendo um barulho que assustou todos os passantes.

Os pedestres e os motoristas pararam e olharam aquele mar de sangue. Em breve, Samanta teria mais um cadáver para conduzir. Sozinha, enquanto esperava uma nova contratada para a função.

Ali embaixo, as luzes se reacenderam. Samanta sabia que algo estava errado com Ana, mas já no fim do percurso, continuou levando Rafaela sozinha. Chegou ao necrotério e não encontrou ninguém. Saiu dali, chegou na rua e viu seus seus companheiros de café e cigarro em pé na calçada, alguns em estado de choque.

A equipe de resgate começava a raspar do chão os pedaços do cérebro de Ana. Ia precisar de caixão fechado. Samanta soube que se tratava da colega de trabalho.


E chorou. Chorou porque ainda estava viva.