sexta-feira, 4 de setembro de 2015

que horas ela volta?



de um lado, a família rica. uma casa gigantesca no morumbi, viagens pelo mundo, roupas caras, utensílios ainda mais. suco de lima da pérsia, sorvete exclusivo para o filho. a redoma de vidro da elite brasileira.

do outro lado, a classe trabalhadora. a mulher que deixa a filha no nordeste e vem sozinha para são paulo, vem trabalhar de forma incansável, vem servir. deixando sua existência de lado, pode enviar dinheiro pra região mais pobre do país. sabendo onde é o seu lugar, pode até ser considerada "praticamente da família".

eu disse "do outro lado". é um erro. em "que horas ela volta?", elas estão dividindo o mesmo ambiente. é a história de uma elite que subjuga os mais pobres, tratando-os como animais exóticos feitos para servi-los.

muita gente considera que o filme de anna muylaert, em cartaz nos cinemas brasileiros, é um estudo de personagens. sim, é. mas não só isso. mais importante: é o estudo de um país em transformação. é uma radiografia de uma situação sócio-econômica que temos visto cada vez mais presente no dia-a-dia.

val, brilhantemente interpretada por regina casé, é a empregada doméstica que mora no trabalho, no quarto dos fundos, sendo vista com aquela benevolência condescendente de seus patrões, "coitada, ela é tão boa, até parece que é gente". o conflito começa quando sua filha, que teve acesso à informação, que cresceu em um país em processo de mudança, chega no mesmo ambiente. uma pessoa com a mesma origem, mas com bagagem totalmente diferente.

val é a figura do pobre nordestino que cresceu nos anos 70, na ditadura militar, num país que os pobres poderiam almejar não passar fome vivendo no quarto dos fundos, sabendo qual era o seu lugar. jéssica, sua filha, é a figura do pobre nordestino que cresceu nos anos 2000, com o país sendo transformado, com condições de prestar vestibular, de viajar de avião, de ter uma chance, mesmo que ainda mínima, de desafiar essas estruturas sociais.

e o que nós vemos com a chegada de jéssica é até onde vai a benevolência condescendente da elite. e é onde vemos a elite se incomodando com a menina que veio do nordeste disputando vaga na usp com seus filhos. é onde vemos a elite se incomodando com dividir espaço no avião com quem antes pegava ônibus clandestino. é onde vemos todo esse incômodo de quem se sente ameaçado, de quem vê a redoma de vidro sendo invadida.

a família que emprega val é o retrato da elite paulistana, do "bandido bom é bandido morto", da indignação com corredores de ônibus, dos protestos nas ruas com micaretas e selfies com a polícia militar. "que horas ela volta?" é o retrato do contraste social de um país que almeja ser diminuído, gerando esse incômodo, esse nojinho, em quem sempre pôde se considerar superior.

"que horas ela volta?" é provavelmente o filme brasileiro mais importante dos últimos anos. porque provavelmente nenhum outro foi tão eficiente e tão sutil em radiografar o país. e esse ponto - a sutileza - também é fundamental. não é necessário ser ultra-dramático ou gerar situações que expõem seus personagens ao sofrimento extremo, como outros cineastas fariam. um ambiente pequeno e o cotidiano são mais que suficientes.

elogiado ao extremo pela crítica americana, talvez chegue até ao oscar. seria incrível ver o filme de muylaert premiado internacionalmente. não só pela obra excepcional que é, mas também pela sua importância em um momento tão delicado do brasil.

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