sábado, 11 de junho de 2016

O exército francês e as guerras modernas

Payet, o novo herói nacional francês
As guerras sempre fizeram parte da humanidade. Boa parte das aulas de história quando estamos na escola são dedicadas a elas. Fosse por território, por religião, por bens materiais, por ideologia ou por diversos outros motivos, os países constantemente se colocavam em novas disputas contra seus vizinhos ou, em tempos mais modernos e com maiores facilidades de transporte, lugares distantes. Nada funcionou tanto em forjar algo como uma "identidade nacional" para os pedaços de terra que foram demarcados e redermarcados como as nações do planeta Terra.

Estamos 80 anos distantes da última grande guerra e boa parte dos países do mundo (exceto na África, que ainda vive num caos bélico eterno graças à partilha surreal feita pelos europeus no século XIX e algumas outras exceções) vive no que, pelo menos nesse sentido, pode ser definido como paz. Nesse meio tempo, o esporte cresceu consideravelmente em popularidade. Os megaeventos, como a Copa do Mundo, as Olimpíadas e a Eurocopa, passaram a fazer o papel de, a cada esporádicos períodos de tempo, gerar patriotismo intenso.

Poucas coisas são mais bonitas que o momento da execução dos hinos antes dos jogos entre seleções nas competições de futebol ou nas cerimônias de medalhas dos jogos olímpicos. Atletas e público entoam a plenos pulmões. Muitos choram. Quando é tocada uma versão mais curta, continuam à capella. Os países podem estar em plena efervescência política interna, mas quando um atleta defende sua terra contra os rivais estrangeiros, essa estranha união volta a tomar conta de todos os habitantes de uma nação.

Atletas são os soldados modernos. Não precisam dar a vida por seus países, mas muitas vezes dão o sangue. Nas grandes disputas futebolísticas, em maioria não são pobres enviados pelo governo para a morte, como já cantava o Black Sabbath no clássico War Pigs:

"Politicians hide themselves away
They only started the war
Why should they go out to fight?
They leave that role to the poor"

Não. Quando vemos um torneio como a Eurocopa, que começou nessa sexta-feira, vemos jogadores com a vida ganha. Os salários deles são monstruosos. Mas uma coisa permanece: majoritariamente, são oriundos das camadas populares.

Tudo isso foi uma introdução para chegar na França de hoje. Provavelmente não há país mais cheio de refugiados. O domínio sobre o norte da África fez com que muitos jovens imigrassem para lá. E muitos outros se refugiassem das guerras, que como dito anteriormente, ainda são constantes nessa parte dominada do mundo. Mas atualmente, tudo é ainda mais cosmopolita. O filme vencedor da Palma de Ouro em Cannes 2015, "Dheepan", nos mostra pessoas fugindo do Sri Lanka e tentando a vida ilegalmente em terras francesas, por exemplo.

Os bairros pobres de imigrantes se acumulam em torno das cidades francesas, sempre com uma paixão em comum: a bola. Não importa se cristão, muçulmano, hindu ou de qualquer outra crença religiosa, crianças crescem com o sonho de jogar futebol. Isso nos leva ao fenômeno visto na seleção francesa atual: não há praticamente nenhum jogador de origem ou descendência local. Quase nenhum jogador que seria considerado pelas elites um "francês puro".

Isso gera preconceito e racismo. Karim Benzema, possivelmente o principal jogador francês da atualidade, não disputa a Eurocopa por motivos extra-campo. O principal deles é ter extorquido o companheiro de seleção Mathieu Valbuena após ter acesso a uma sextape do colega, mas não podemos deixar de lado o atrito sobre a recusa do centro-avante do Real Madrid em cantar a tradicional Marselhesa, hino nacional francês, que é absurdamente ofensivo a toda essa população estrangeira que defende as cores da França.

"Nossa terra do sangue impuro se saciará".

Benzema diz que "quando joga bem é francês, quando joga mal é um árabe filho da puta". E pra quem mais os dezenas de milhares de franceses que pagaram até 565 euros pra ver a abertura da Eurocopa hoje torcem? Paul Pogba é filho de guineanos. Blaise Matuidi, de angolanos. Kingsley Coman, de guadalupenses. Muito "sangue impuro". Jovens que, se não fossem extremamente talentosos com a bola, estariam sofrendo racismo e violência nos subúrbios das cidades francesas.

Hoje, são os heróis da "identidade nacional".

A França venceu a Romênia por 2 a 1. Empatava até os 44 minutos do segundo tempo, quando Dimitri Payet, que já vinha sendo de longe o melhor jogador em campo, acertou um petardo de fora da área para dar a vitória aos anfitriões. O meia-atacante do West Ham United foi substituído em seguida e saiu de campo aplaudido de pé. E em prantos.

Desde já, uma das cenas mais emocionantes - e emblemáticas da Eurocopa 2016.

Mas seria Dimitri Payet um "francês puro"? Não. Ele nasceu na Ilha Reunião, perto de Madagascar, até hoje uma colônia francesa na qual 42% das pessoas vivem abaixo da linha da pobreza.

Por enquanto, Payet é o herói nacional, vindo de longe, responsável pela vitória na batalha de Saint Denis. Mas e quando ele errar? Até quando a população o abraçará como alguém a ser louvado?

Em parte considerável do mundo, é mais fácil ver como o esporte desenha a questão da identidade nacional no lugar das guerras. Quando a seleção kosovar entrar em campo nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 2018 certamente teremos um momento histórico de união em torno de uma bandeira. Mas, na França, isso aparentemente passa longe de existir. E as pessoas que pagam esses 565 euros para ver a legião de negros das colônias jogando futebol muitas vezes reproduzem costumes das antigas feiras de aberrações, tão comuns na Europa do Século XIX - "Vênus Negra", filme de Abdellatif Kechiche, é outro que ajuda a ilustrar o painel geral aqui.

De qualquer forma, a torcida é que a França possa realmente se unir durante a Eurocopa. Um país em caos étnico, na qual uma revista faz desenhos racistas e em seguida sofre atentado a bomba. Um título continental dessa seleção de filhos de imigrantes pode ajudar a repensar essa identidade nacional e forjar um país mais igualitário? Nunca devemos duvidar do poder do futebol.

Por enquanto, tudo parece falso. Benzema tem razão em não cantar esse hino junto com tantos milhares que odeiam sua raça, sua religião, sua origem. E o choro de Payet representa não só uma conquista pessoal, mas de todo um povo - quando é que alguém de Reunião poderia ser herói nacional?

Coisas que o esporte nos proporciona. Talvez seja a única saída. Para muitos, é.

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